Quando o Salmista escreveu que “nossos anos de vida são setenta, oitenta para os mais robustos” (Sl 90,10), estava querendo ser generoso com todos, pois a idade média de vida em seu tempo não passava muito dos 40 anos. Hoje, tendo diante de mim tudo o que vi e vivi, e tendo presente tudo o que ainda gostaria de fazer, concluo que a noventa anos vai a duração de uma vida; os mais robustos chegam a cem. Desconfio que, se chegar aos noventa, pensarei de forma diferente… A verdade, porém, é que a vida não vale tanto pelo número de anos vividos, mas por sua intensidade.
Viver é uma graça; viver é um dom. Escrevendo a seu amigo Timóteo, o apóstolo Paulo lhe disse: “Não descuides o dom da graça que tu tens”. Para cuidar bem desse dom, é preciso, antes de tudo, olhar para o passado. À medida que o faço, vejo multiplicarem-se diante de mim rostos queridos, de pessoas que marcaram os meus passos. Penso em meu pai e em minha mãe, e sinto-me motivado a agradecer a Deus pelo lar em que nasci. Penso em meus irmãos e irmãs que não estão mais comigo e vejo que, se é verdade que levaram um pouco de mim quando partiram, deixaram muito de si a influenciar a minha vida. Olho para meus irmãos que continuam caminhando comigo e sinto-me motivado a agradecer ao Senhor por essa sua presença. Recordo-me de inúmeros amigos e concluo que minha vida seria muito pobre sem sua presença. Volto-me para lugares onde vivi como seminarista, onde trabalhei como sacerdote e onde atuei como bispo e penso: Que privilégio eu tive! Confesso-lhes que nunca imaginara ter a oportunidade de conhecer de perto a Bahia e, muito menos, de poder conviver com este povo alegre, que me acolheu há dois anos e meio. Tudo é graça! “Cuida de ti mesmo!”, admoestava Paulo a Timóteo. Penso, antes, em todas as pessoas que cuidaram de mim, que me acompanharam, e só me resta dizer: Recompensa-as à tua maneira, Senhor!
Olho para a mulher que foi ao encontro de Jesus na casa do fariseu que o havia convidado para uma refeição. Curiosa, essa mulher! Não se expressou por palavras, mas por gestos. Jesus os compreendeu e os valorizou. Penso em todos aqueles que encontrei em meu caminho e que igualmente não se manifestaram por palavras. Também eles tinham consigo um frasco de alabastro com perfume, com o qual perfumaram o ambiente em que eu vivia. Com seu testemunho, com sua coerência e fidelidade, me motivaram a procurar ser melhor. Se muitas vezes não consegui isso, foi por minhas próprias limitações, não por culpa deles.  Quando escuto algumas pessoas; quando tomo conhecimento do sofrimento enfrentado por outras; quando vejo algumas situações e comportamentos, entendo melhor o tal fariseu: ele tudo olhava, mas pouco entendia. Via os gestos da mulher lavando os pés de Jesus, enxugando-os com seus cabelos e ungindo-os, mas não via o coração sofrido daquela que, para ele, não passava de uma pecadora.  A graça do sacerdócio e, particularmente, do episcopado, me tem dado condições de participar de perto da ação da graça de Deus nas pessoas e nos corações. Penso comigo: se eu fosse capaz de compreender e de aprender tudo o que o Senhor está querendo me ensinar com tais pessoas, quanto já conheceria melhor dele próprio! Sim, é um privilégio poder testemunhar tudo isso, é uma graça ter sido chamado para esse ministério. Quanto preciso da oração de todos para poder dar uma melhor resposta a esse dom recebido!
Sou um homem de sonhos, de muitos sonhos. Porque pouco posso fazer para vê-los concretizados, volto-me para Maria, a Mãe de Jesus, a intercessora de Caná e de todas as situações em que seus filhos e filhas enfrentam dificuldades, e lhe peço que interceda junto a Jesus, para que eu saiba colocar o passado na misericórdia de Deus; o presente, em seu amor, e o futuro, em sua providência.
N.B.: Quis repartir com meus leitores algumas das reflexões que fiz na última quinta-feira, na celebração eucarística pela passagem de meus 70 anos. Os textos bíblicos proclamados foram: 1Tm 4,12-16 e Lc 7,36-50.

Dom Murilo S.R. Krieger, scj

Arcebispo de São Salvador da Bahia, Primaz do Brasil

LITURGIA DIÁRIA